domingo, 20 de setembro de 2015

50 TONS DE CINZA SOB A ÓTICA DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO

Por: Clever Jatobá[1]

1 INTRODUÇÃO: 50 TONS DE CINZA
 
O best seller literário, “50 tons de cinza”, da escritora britânica E. L. James chega ao cinema trazendo ao imaginário popular fetiches sadomasoquistas que fomentam a libido e a sexualidade na sociedade contemporânea, pois as aventuras eróticas de Christian Grey e de Anastasia Steele tiraram suspiros de leitores por todo o mundo, além de fomentar fantasias sexuais das mais variadas possíveis.
 
A obra literária aborda as aventuras eróticas sadomasoquistas do casal, levando-se em conta o fato de que o dominador estabelece perante a dominada dois contratos, um termo de confidencialidade e um contrato que regula as práticas adotadas pelo casal, estabelecendo direitos e deveres de ambos, estabelecendo, assim, a submissão feminina aos devaneios eróticos do seu dominador.
 
O tema resvala diante do Direito em várias vertentes haja vista o fato de desnudar o trato sexual e as relações íntimas da privacidade do casal. Neste contexto, cabe apreciar a (im) possibilidade de garantia da validade e eficácia destes contratos, levando-se em conta o contexto do Direito Civil Brasileiro.
 
Não obstante à seara contratual, pode ser cogitada que a empolgação diante das práticas sadomasoquistas, mesmo que consensualmente praticada, possa ocasionar danos a uma das partes, fato este que remete a situação ao apreço da responsabilização civil do causador do dano, imputando-lhe o dever de indenizar a sua vítima.

Outrossim, diante da liberdade sexual e do terreno fecundo em que o envolvimento é tratado, não se pode olvidar de, sob a ótica dos Princípios da Dignidade da pessoa humana, da afetividade e da liberdade, apreciar tal fenômeno diante do Direito de Família contemporâneo e dos novos arranjos familiares.
 
Diante destes três aspectos é que buscaremos apreciar o contexto da obra literária à luz do Direito Civil Brasileiro neste pequeno ensaio.


2. 50 TONS DE CINZA E O DIREITO CONTRATUAL BRASILEIRO
 
Os contornos da aventura erótica dos personagens têm como ponto de partida a utilização de dois "contratos". O primeiro, um termo de confidencialidade, que resguarda o segredo de toda a relação do casal; e o segundo, um contrato que ajusta entre as partes direitos e deveres, além de pormenorizar as regras dos jogos eróticos, as práticas sexuais e os brinquedos e fetiches adotados na relação.
 
Partindo-se da premissa de que o contrato é o negócio jurídico responsável por ajustar a livre manifestação de vontade das partes de produzir, regulamentar, modificar e extinguir direitos e obrigações, sendo estabelecido nos limites da sua função social e da boa-fé, inicialmente poder-se-ia acatar o termo de confidencialidade, que estabelece a obrigação de não fazer, ou seja, a obrigação de não expor publicamente informações acerca da relação do casal, nem tampouco qualquer episódio vivenciado pelos mesmos, sob pena de responsabilização civil contratual.
 
Tratando-se agentes capazes, objeto lícito, possível, determinado, sem forma prescrita em lei, nem tampouco proibido na legislação brasileira (Art. 104 do CC-02), tal termo de confidencialidade tem sua validade garantida, pois obsta apenas o vazamento de informações privadas da relação, sendo possível, inclusive, o estabelecimento de "cláusula penal" de natureza inibitória da violação, bem como, sancionando aquele que descumprir os seus termos.
 
Não obstante a isso, no tocante à disciplina das práticas sexuais, da disposição do próprio corpo e sobre a submissão sexual às aventuras sadomasoquistas, podemos atestar a impossibilidade de firmar um contrato formal com tal teor, haja vista o fato de estar sendo violado os direitos da personalidade, no tocante à privacidade do casal, sua integridade física e a honra, uma vez que tais direitos são indisponíveis, não têm expressão econômica e, portanto, não são objeto das obrigações contratuais, quais têm apenas como objeto as prestações de natureza patrimoniais.
 
Uma vez que o contrato é fonte geradora de obrigações, neste esteio, nos socorremos da lição do Prof. Álvaro Vilaça Azevedo  (2011, p.13), para esclarecer que:


(...) obrigação é a relação jurídica transitória, de natureza econômica, pela qual o devedor fica vinculado ao credor, devendo cumprir determinada prestação pessoal, positiva ou negativa, cujo inadimplemento enseja a este executar o patrimônio daquele para a satisfação do seu interesse. (grifos nossos)


Neste contexto, levando-se em conta o fato de que a sexualidade e as práticas adotadas no seu exercício por fazerem parte do universo da privacidade do casal e integram o rol de direitos da personalidade, quais, a propósito, têm entre suas características a extrapatrimonialidade, não se pode reconhecer uma feição econômica que lhe permita configurar uma prestação obrigacional passiva de regulação contratual, inclusive pela impossibilidade de, em caso de descumprimento das "obrigações reguladas neste contrato", recorrer ao Judiciário para satisfazer a pretensão do credor por meio de uma execução do título extrajudicial, como uma simples obrigação de não fazer.
 
Não obstante a isso, a prática consensual entre os mesmos encontra-se protegida pela autonomia da vontade, pela liberdade sexual e pela privacidade do casal, de modo que as relações consentidas, nos limites em que não infrinjam nenhum direito, nem causem danos (à saúde, vida ou integridade física, por exemplo), podem ser tranquilamente adotada pelos parceiros, sem qualquer interferência de instrumentos, institutos e ferramentas do universo jurídico.
 
3. RESPONSABILIDADE CIVIL E AS PRÁTICAS SADOMASOQUISTA
 
Não obstante o fato das relações sadomasoquista poderem ser adotadas livremente por seus praticantes diante da liberdade do exercício da sua sexualidade e de tal relação estar protegida pelo fato da privacidade integrar uma das espécies dos direitos da personalidade, não se pode olvidar o fato de que, na empolgação do fetiche sexual, o ato praticado pode ocasionar danos a uma das partes. Assim, no âmbito do Direito Civil, a relação passa a desaguar na concepção da responsabilidade civil.
 
A responsabilidade civil é o dever jurídico (secundário) de recompor um dano decorrente da violação de um dever jurídico primário, no qual far-se-á necessário identificar quem ou o que deu causa ao dano para eu haja imputação da responsabilidade de reparar ou compensar a vítima.
 
Em outras palavras, a responsabilidade civil nada mais é do que o ramo do Direito Civil que estabelece a indenização como forma de reparar ou compensar as vítimas (diretas ou indiretas) de danos patrimoniais (material - dano emergente e ou lucro cessante) ou extrapatrimoniais (moral e ou estético).
 
O alicerce da responsabilidade civil é o princípio do neminem laedere, qual determina que a ninguém é dado o direito de causar dano a outrem, portanto, ao causar um dano faz surgir o dever de indenizar.
 
No âmbito das práticas sadomasoquistas, o auge do prazer e da excitação pode fazer com que os praticantes percam o controle e no ápice da relação transcendam limites conscientes diante destas práticas sexuais, assim, pode acontecer que excessos possam ocasionar danos à integridade física e até emocional de um dos parceiros. Assim, caso sejam concretizados danos, estes reclamam reparação civil.
 
A responsabilidade civil é classificada em subjetiva e em objetiva. A responsabilidade subjetiva é aquela aferida com base na culpa do sujeito, que agiu de forma negligente, imperita, imprudente ou até de forma dolosa e que sua conduta, violando e ou ofendendo um bem jurídico tutelado pelo direito, ocasionando um dano, este deverá ser reparado ou compensado. Por sua vez, a responsabilidade objetiva será atribuída, independentemente do apreço da culpa, nos casos previstos em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo causador do dano implicar em risco ao direito de outrem.
 
Aquele que na empolgação da prática sadomasoquista numa conduta culposa (negligência, imprudência, imperícia ou dolo), ofender a integridade física ou psicológica do seu parceiro sexual e causar-lhe dano patrimonial ou extrapatrimonial, terá o dever de indenizar a vítima, de modo a reparar ou compensar o prejuízo suportado. Tal hipótese estará agasalhada pela concepção da responsabilidade subjetiva, pois encontra alicerce no fundamento da culpa de quem adotou a conduta ilícita (Art. 186 conjugado com o Art. 927 do Código Civil Brasileiro).
 
Neste contexto, urge reconhecer que as práticas sadomasoquistas podem causar danos à integridade física e psíquica, quais podem reclamar uma indenização para reparar os prejuízos materiais (despesas com medicamentos, tratamento psicológico, médico, cirúrgico e hospitalar)  e ou compensar os eventuais danos extrapatrimoniais (ofensas à própria personalidade, que ocasionem dores na alma e vitime a sua própria dignidade), permitindo o estabelecimento de uma indenização direcionada a reparar ou compensar danos morais e materiais correspondentes.
 
4. 50 TONS DE CINZA E O DIREITO DE FAMÍLIA BRASILEIRO
 
Fora o aspecto sexual, não se pode fechar as portas para a possibilidade desta aventura se transformar, para além do lado carnal, em um envolvimento afetivo, pois o coração tem vida própria que vitima a razão e alimenta um turbilhão de emoções que podem atrelar o casal a projetos de vida comuns, que diante da pluralidade das entidades familiares pode perfazer os requisitos essenciais à edificação familiar.
 
Neste contexto, pode surgir um casamento, ou uma união estável, ou até colocar a sociedade em xeque-mate diante de relações poliafetivas (fundadas no poliamor), ou na coexistência de relações paralelas ou simultâneas que desafiam o judiciário e a tradição monogâmica, quebrando tabus e desafiando novos paradigmas do comportamento afetivo e sexual da Família contemporânea.
 
Há de se registrar que nas últimas décadas a sociedade brasileira passou a conviver com infinitas transformações culturais e sociais, quais reclamaram uma releitura do Direito, de modo a proporcionar, numa sociedade justa, solidária e pluralizada, a valorização da dignidade humana, da igualdade e da liberdade.
 
Neste contexto, sob a égide do princípio da afetividade, a família brasileira foi pluralizada, repaginando o universo jurídico, permitindo, sob a ótica constitucional, reconhecer para além do casamento, outras entidades familiares como a união estável, família monoparental, família homoafetiva, família extensa ou ampliada, família recomposta ou reconstituída.
 
Respeitando-se a noção de dignidade, a liberdade sexual e fundando a família contemporânea sobre o alicerce do afeto, as relações concebidas como concubinárias, assim como enlaces afetivos que transcendam ao limite do casal para albergar triângulos amorosos ou mais sob o manto do poliamor vem desafiar a cultura conservadora.
 
Neste cenário multifacetário, globalizado e fundado na diversidade infinita de hábitos, culturas, raças, sexo, religiões e cores, a pluralidade é a palavra de ordem dos 50 tons de cinza do Direito de Família Contemporâneo.
 
 
 
REFERÊNCIAS 
 

AZEVEDO, Alvaro Villaça. Teoria Geral das Obrigações e Responsabilidade Civil. Curso de Direito Civil. 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2011.

 
JAMES, E. L. Cinquenta tons de cinza. Trad. Adalgisa Campos da Silva. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.




[1] Clever Jatobá é Advogado e Consultor Jurídico baiano, Mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela UCSal, Pós graduado em Direito do Estado pelo JusPodivm e Faculdade Baiana de Direito, Professor da Faculdade Ruy Barbosa (DeVray Brasil), por onde é Advogado e Supervisor do Balcão de Justiça e Cidadania (Salvador-BA), Professor e Coordenador do Curso de Direito da Faculdade Apoio Unifass (Lauro de Freitas-BA).

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