UM
DIREITO PARA “AS FAMÍLIAS”[1]
Por:
Clever Jatobá[2]
No século XX, à luz do Código
Civil Brasileiro de 1916, o casamento era a única maneira de se constituir
família. A família tinha compreensão restrita e direcionada; ou seja, casava-se
para procriar e assim perpetuar a espécie, bem como para acumular patrimônio e
ter com quem deixá-lo após a morte. Outrossim, como a virgindade era um tabu e
o sexo antes do casamento era um absurdo, o matrimônio servia para regularizar
as relações sexuais clandestinas e imorais.
Neste esteio, a família tinha
características próprias: era matrimonializada, portanto era essencialmente
heterossexual, uma vez que a diversidade de sexos é fundamental ao casamento;
indissolúvel, pois “o que Deus une o
homem não separa”; unicamente patriarcal, gerando submissão absoluta de
todos os membros da família à chefia do pater; hierarquizada entre os próprios
membros e basicamente patrimonialista. Este era o raio-x da família dos anos
novecentistas.
Com as constantes modificações
históricas e sociais, ocorridas desde a emancipação financeira da mulher,
causada pela sua inserção no mercado de trabalho, bem como diante do
liberalismo sexual, o mundo mudou. Como não podia ser diferente, o direito
também sofreu imensos abalos.
A falência do positivismo
jurídico após a IIª Guerra Mundial foi agravada diante do processo de
normatização dos princípios. O fenômeno da Constitucionalização do Direito
garantiu supremacia substancial à Norma Maior do ordenamento jurídico,
permitindo maior eficácia aos direitos e garantias fundamentais, e sua
aplicação entre particulares, bem como amoldando o direito ao processo de
humanização das relações.
Neste esteio, a família
brasileira, a partir do advento da Constituição Democrática de 1988, passou a
ser redesenhada, com valores mais humanos, fraternos, plurais e igualitários,
sempre fundados na dignidade da pessoa humana.
Nestes moldes a família abraçou a
pluralidade. Quebra-se a hegemonia do casamento como única forma de constituir
família. O texto Constitucional reconhece expressamente, além do casamento, a união
estável como entidade familiar. Trata-se daquele convívio público, contínuo
e duradouro entre homem e mulher, com o intuito de constituir família.
Por sua
vez, concebeu também como família a comunidade formada por pais, ou qualquer
deles e os seus filhos, sendo chamada de família monoparental (Art.226 da CF-88).
Ocorre que, diante dos novos
paradigmas do direito, o fundamento da família passou a repousar sobre o afeto
e na busca da realização pessoal dos seus membros, valorizando a dignidade de
cada um deles, concebendo uma igualdade substancial ao casal, aos filhos e a
todos que integram este ambiente doméstico e familiar.
Família, portanto, torna-se uma
comunidade de entreajuda, fundada no afeto, que busca promover o
desenvolvimento da personalidade e das potencialidades de seus membros, sempre
na direção da felicidade.
Assim, com o alicerce no afeto,
na igualdade e na dignidade da pessoa humana, a família torna-se gênero que
alberga inúmeras espécies. Neste sentido, Paulo Lôbo (2004, p1-18) esclareceu
que o rol constitucional seria meramente exemplificativo, não restringindo as
entidades familiares às hipóteses prescritas no texto legal. Sendo assim, além
do casamento, da união estável e da família monoparental, podemos conceber as uniões
homoafetivas, o casamento homoafetivo, as famílias parentais, a família extensa
ou ampliada e as famílias recompostas ou reconstituídas entre outras que ainda
podem surgir.
A família homoafetiva
consiste na entidade familiar, que estabelece uma comunhão de vida por meio de
um convívio público, contínuo e duradouro, com alicerces sólidos no afeto, mas
estabelecido por pessoas do mesmo sexo. Trata-se da união familiar entre pares
homoafetivos.
Apesar da legislação pátria não a
disciplinar, as uniões homoafetivas, após anos de debates controvertidos na
doutrina e na jurisprudência, as mesmas foram reconhecidas como entidade
familiar pela decisão do STF no bojo da ADPF n.º 132/DF e da ADI n.º 4277/RJ,
aplicando-se a ela, por analogia, todo o regramento legal destinado às uniões
estáveis, de modo a suprir a lacuna da lei.
Vale acrescentar, que após o
reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar e com a aplicação
por analogia da legislação destinada às uniões estáveis, passaram a bater às
portas do judiciário pedidos de conversão da mesma em casamento, bem como
pedido de casamento entre pessoas do mesmo sexo. Neste ponto, o STJ apreciando
o Recurso Especial n.º 1183378-RS (2010/0036663-8) passou a reconhecer como
legítimo a conversão das uniões homoafetivas em casamento, sinalizando que não
consta entre os impedimentos matrimoniais (Art. 1521 do CC-02) qualquer vedação ao
casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Destarte, não há porque obstar a
igualdade de oportunidades à constituição
matrimonial com base na discriminação sexual, ou no preconceito, pois estes são
vedados constitucionalmente pelo princípio da igualdade, prescrito no Art. 5º
da nossa Carta Magna. Tem-se, portanto, o reconhecimento do Casamento Igualitário[3],
também chamado de Matrimônio Homoafetivo.
Adequando o conceito de família à
noção sedimentada na sociedade, passou-se a reconhecer que os vínculos de
parentesco integram uma concepção familiar própria, diante desta realidade, há
por sedimentado as famílias parentais
como um agrupamento familiar próprio e importantíssimo na edificação da
personalidade do indivíduo.
A compreensão social da família
pelo viés do parentesco concebeu a família extensa ou ampliada,
reconhecida expressamente pelo ECA. Trata-se da ampliação do conceito de
família, transcendendo ao núcleo formado por pais e filhos, albergando, assim,
os parentes próximos, com os quais a criança ou adolescente tenham estabelecido
um vínculo de afinidade e afetivo sólido.
Por sua vez, a maior ebulição da
família contemporânea ocorre diante das famílias recompostas ou
reconstituídas. Consiste na idéia de se conceber juridicidade à relação
familiar firmada por pessoas que já tiveram outra família, mas que buscam
reconstruir suas vidas em outro ambiente familiar. Nesta realidade as pessoas
se unem levando filhos de outros relacionamentos. Assim, o convívio entre
padrastos ou madrastas e seus enteados, bem como entre os filhos de cada um
deles, passam a reclamar uma tessitura legal própria que ampare novos direitos
e até uma nova compreensão dos laços de parentesco por afinidade.
Conforme alerta Paulo Lôbo (2008,
p. 73), nestas relações “é inevitável que o padrasto ou madrasta assuma as
funções inerentes da paternidade ou maternidade”, de modo que cabe ao direito
de família ampliar seu alcance de modo a agasalhar estas relações familiares,
concebendo-lhes os direitos que lhes forem inerentes.
Pois bem, no mundo
multifacetário, globalizado e fundado na diversidade infinita de hábitos,
culturas, raças, sexo, religiões e cores, temos que uma sociedade plural e
igualitária que preserve a dignidade da pessoa humana, precisa ser construída
no cotidiano, mas devidamente agasalhada pelo direito, assim, a família como
primeiro ambiente social no qual a pessoa se encontra inserida é o ponto de
partida do direito contemporâneo para tal desiderato.
REFERÊNCIAS
BRASIL, Constituição Federal Brasileira, 1988.
______, Código Civil Brasileiro, 2002.
DOMINGUEZ,
Andrés Gil, FAMA, Maria Victoria. HERRERA, Marisa. Matrimonio Igualitario Y
Derecho Constitucional de Familia, Tomo I. Buenos Aires: Ediar, 2010.
LÔBO, Paulo Luiz Netto, Entidades Familiares Constitucionalizadas: para Além dos Numerus Clausus. In:FARIAS, Cristiano Chaves de. Temas Atuais de Direito e
Processo de Família. Rio de janeiro: Lúmen Júris, 2004. p-1-18.
Lôbo, Paulo. Direito Civil. Famílias. São Paulo:
Saraiva, 2008.
LEITURAS
COMPLEMENTARES SUGERIDAS:
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013.
FARIAS, Cristiano Chaves. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Famílias. V.6.
Salvador: JusPodivm, 2013.
GAGLIANO, Pablo stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Famílias.
São Paulo: Saraiva, 2013.
JATOBÁ, Clever. A Pluralidade da Família no Direito Constitucional de Família Brasileiro.
In: TAYAH, José Marco. ROMANO,
Letícia Danielle. ARAGÃO, Paulo. (Coord) Reflexiones sobre Derecho
Latinoamericano. Volumen 10, Buenos Aires, Rio de Janeiro, São Paulo: Editorial
Derecho Latino, Livre Expressão, 2013. P.157-176.
[1] O tema ora abordado, acerca da
pluralidade das entidades familiares perante o Direito brasileiro é objeto de
estudos do autor no bojo do Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea,
pela Universidade Católica do Salvador (UCSal), tendo sido pesquisado pelo
mesmo há alguns anos, inclusive, havendo publicação de artigo sobre o tema na
Obra Reflexiones sobre Derecho Latinoamericano, volumen 10, lançado em Buenos
Aires, 2013.
[2] Clever Jatobá é Advogado e Consultor Jurídico, Aluno do Doutorado
em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires (Argentina. Mestrando em
família na Sociedade Contemporânea pela UCSal, além de Pós Graduado em Direito
do Estado pelo JusPodivm e Faculdade Baiana de Direito. Professor e Coordenador
do Curso de Direito da faculdade Apoio Unifass. Professor de Direito da
Faculdade Ruy Barbosa, onde é Coordenador e Advogado do Balcão de Justiça e Cidadania
da Boca do Rio.
[3] A expressão casamento
igualitário faz alusão à igualdade de oportunidades de se constituir família
por meio do matrimônio, independentemente do sexo dos cônjuges. Tal expressão,
a propósito, foi adotada pelo Direito Civil Argentino, ao disciplinar em seu
ordenamento jurídico o Matrimônio Igualitário por meio da Lei n.º 26.618,
promulgada em 15 de julho de 2010 (DOMINGUEZ, FAMA, HERRERA, 2010).
Nossa, muito bom. Parabéns!
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