segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Os Smurfs 2 à luz da Família Conteporânea

Clever Jatobá[1]

1. AS AVENTURAS DOS SMURFS 2

Agora no final de semana, em clima de Dia dos Pais, fui ao cinema com meus filhos assistir ao filme dos SMURFS 2. Inicialmente pode soar como um singelo entretenimento familiar com um filme de personagens infantis que, atenderia à sua função apenas pela ótica do lazer.

Ocorre, porém, que ao começar a assistir ao filme, o enredo do mesmo me remeteu a algumas reflexões jurídicas, quais, doravante apreciarei.

O filme conta a estória dos Smurfs, uns serezinhos azuis de aproximadamente 25 centímetros de altura, que, sob o comando do Papai Smurfs, vivem numa vila perdida na floresta. Ocorre, porém, que nos arredores desta vila, existe um feiticeiro e alquimista chamado Gargamel, que junto com o seu gato, Cruel, persegue os Smurfs, figurando como o vilão da estória.


Conforme se depreende da estória, o Gargamel, por meio das suas feitiçarias, conseguiu criar a Smurfette, um serzinho similar a eles, mas do sexo feminino, que apesar de ter sido criada para ajudá-lo a capturar os Smurfs, ela terminou sendo acolhida por eles, passando a integrar a família como a única fêmea dos Smurfs.


Agora no 2º filme, o Gargamel cria dois serezinhos maus, chamados de “Danadinhos” (Vexy e Hackus), para ajudá-lo na missão de sequestrar a Smurfette para, assim, tentar descobrir a formula mágica por meio da qual o Papai Smurf a transformou em um deles, de modo a permitir-lhe transformar os Danadinhos em Smurfs também e, assim, explorar sua essência para dar continuidade aos seus planos malignos.


Apesar de ser um filme tipicamente infantil, com personagens originários dos desenhos animados, duas situações merecem destaque. Inicialmente, o fato da Smurfette ser filha do Gargamel (já que ela foi gerada por ele) e ter sido acolhida afetivamente pelo Papai Smurf, passando a ser integrada à família como mais um dos seus filhos, agora, o Gargamel cria os Danadinhos, mas apesar de ser pai deles também, com o desfecho da aventura, os mesmos também são acolhidos pelos Smurfs, passando a ser tratados como um deles, integrando, afetivamente a família do Papai Smurf.

Diante da estória, nos grita aos olhos uma situação inusitada das conjunturas da família contemporânea, que se amolda à noção da filiação socioafetiva, onde o vínculo paterno-filial é construído pelo afeto, não por laços biológicos. Isso mesmo, pois tanto a Smurfette, quanto os dois Danadinhos, a Vexy e o Hackus, são filhos do Gargamel, mas ao serem acolhidos pela família Smurf, passam a integrá-la, estabelecendo, assim, um vínculo essencialmente afetivo entre pai e filhos.

2. DA FILIAÇÃO

A procriação é responsável pela magia da vida, pois consiste na forma com que um ser vivo produz e dá origem a um descendente da sua própria espécie.

Atualmente, a produção de um descendente da própria espécie pode ser um fato natural, ou artificial. Natural, quando decorre da relação sexual dos genitores, ao tempo em que artificial, quando for usada as técnicas médicas de reprodução assistida.

Transplantado para o âmbito do direito, dá-se origem à Filiação, que consiste no vínculo jurídico de parentesco em linha reta, de 1º grau, pelo meio do qual estarão interligado pais e filhos para todos os fins de direito, englobando, assim, tanto os direitos pessoais, quanto obrigacionais, independente de qual seja a sua origem.

2.1. DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

A filiação, como um vínculo jurídico de parentesco, apresenta-se de duas formas, quais sejam, a filiação biológica e a filiação não biológica.

Ao tempo em que a filiação biológica tem seu fundamento na consanguinidade, onde pais e filhos estão interligados pelos laços genéticos, na filiação não biológica, o vínculo estabelecido transcende ao dado biológico, indo além da consanguinidade, sendo pautado nas afinidades, na convivência, na troca de afeto e no exercício das responsabilidades típicas dos pais perante seus filhos, emanando das relações fáticas o vínculo socioafetivo.

A filiação socioafetiva é mais que um dado, ela materializa a construção da paternidade no convívio cotidiano sendo alicerçada com base no afeto, na garantia de uma criação digna, preocupada com a saúde e a educação típica das relações domésticas familiares inerentes ao vínculo entre pais e filhos.

Luiz Edson Fachin (1996, p. 36-37), entende que, “Se o liame biológico que liga um pai a um filho é um dado, a paternidade pode exigir mais do que apenas laços de sangue. Afirma-se aí a paternidade socioafetiva que se capta juridicamente na expressão de posse de estado de filho”.

Assim, aquele que age como um pai perante seu filho, assumindo as responsabilidades inerentes à criação, educação, cuidados e amparo afetivo, mesmo desatrelado do liame genético, demonstra conviver diante da posse de estado de filiação, sendo, assim, por conta das circunstâncias fáticas, é tido como pai, pois o provérbio popular há muito já prenuncia que “pai é quem cria”.

Assim, afirma-se que a filiação deixa de ser um dado e passa a ser concebida diante da sua função social, ou seja, do exercício efetivo de uma função desempenhada por alguém que assume o múnus de cuidar, educar e assistir afetiva e materialmente alguém como se fosse um filho (Art. 229, CF-88).

Neste contexto, inclusive, Rodrigo da Cunha Pereira (2004, p.387) afirma que este lugar pode ser ocupado por alguém, que não necessariamente seja o pai biológico, ou seja, esta função pode ser exercida “por outra pessoa como o irmão mais velho, o avô, o namorado, etc.”
3. FILIAÇÃO BIOLÓGICA x FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

Pode parecer contraditório o fato da filiação socioafetiva passar a ser discutida atualmente, num momento onde os avanços científicos da medicina e da biogenética atestam por meio do exame de DNA a origem genética de um indivíduo com o grau de certeza de 99,9%.

Bem, por mais que seja difícil de compreender, o exame de DNA perante o direito se adequa à categoria de meio de prova pericial, qual, além de não ser o único meio de prova, conforme teoria geral do direito, não há hierarquia entre as provas, assim, cabe ao bom magistrado formar seu convencimento diante do apreço de todo o arcabouço probatório que estiver acostado aos autos do processo, sem precipitação, pois de que valeria um dado biológico, se a função paterna for menosprezada em seu favor?!

Bem, diante da existência destas duas espécies de filiação, a filiação socioafetiva foi sedimentada na doutrina, o que desaguou no recebimento de um crescente número de demandas no judiciário, fato que levou a discussão ao Supremo Tribunal Federal (STF) como um tema de repercussão geral e interesse social, mas que ainda está aguardando o posicionamento da Corte Constitucional.

Bem, enquanto não se tiver uma resposta do STF, o posicionamento prevalecente hoje em dia é de que, diante desta realidade, ambas as espécies de filiação coexistem, não havendo prevalência de uma sobre a outra. Diante dum eventual embate entre elas, cabe o apreço das circunstâncias fáticas do caso concreto, com razoabilidade, ponderando os interesses legítimos no processo.

Cabe-nos asseverar ainda que o AFETO só pode ser utilizado como fator de constituição do vínculo de filiação, mas nunca deve ser utilizada a sua ausência para esquivar, quem alegue, das obrigações paterno-filiais decorrentes do reconhecimento da filiação.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme apresentado ao longo do filme dos Smurfs, apesar do Gargamel ser o responsável pelo nascimento da Smurfette, bem como dos Danadinhos, Vexy e Hackus, ao serem acolhidos pelo Papai Smorf, tratados como filhos, integrados à família azulada com muito carinho, amor e cuidado uns para com os outros, oportuniza-se que os vínculos socioafetivos se estabeleçam, demonstrando que a voz do afeto vai muito mais além do que o simples dado biológico.

Outrossim, há que compreender que um filho pode se manifestar na vida da pessoa de várias maneiras, não podendo ser desprezada tal realidade, independente da sua origem.

REFERÊNCIAS

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Pai, Por que me Abandonaste? In: FARIAS, Cristiano Chaves de. (Coord.). Temas Atuais de Direito e Processo de Família. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004.

FACHIN, Luiz Edson. Da Paternidade: Relação Biológica e Afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.


[1] Clever Jatobá é Advogado e Consultor Jurídico, Pós Graduado em Direito do Estado, bem como em Direito Civil e do Consumidor (JusPodivm), Mestrando em Família na Sociedade Contemporânea (UCSal), bem como, Aluno do Curso de Doutorado em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires (UBA – Argentina). Professor de Direito Civil, Direitos da Criança e do Adolescente e de Direito do Consumiddor. Coordenador do Curso de Direito da Faculdade APOIO UNIFASS (Lauro de Freitas-Ba). Membro do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família.

4 comentários:

  1. Muito bom. Parabéns querido. Vejo com muito bons olhos essa aproximação entre o direito e a arte, que nos força lembrar a todo instante que o direito nos cerca o tempo inteiro e está para muito além dos livros e da sala de aula.

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  2. Excelente. Nota-se que o direito está em tudo, mesmo que implicitamente, parabéns pela reflexão jurídica e pelo olhar jurídico diante desses ''fatos''. Abraço.
    Gabriela Freire, 2º semestre de direito, faculdade apoio-UNIFASS

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  3. Excelente reflexão, Professor.
    A maior lição que tirei da leitura é que quando temos conhecimento, podemos enxergar além...
    Tenho desenvolvido estudos acerca da Paternidade Socioafetiva e, diante do vosso texto, pude ver o quão enriquecedor pode ser a observação do quotidiano, dos filmes, das novelas, dos romances, enfim. Até de uma película para miúdos, como os Smurfs, pode ser bem aproveitada.
    Congratulações. Abraço,
    Lídia Campos.
    (Vila Real - Portugal)

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