Clever
Jatobá[1]
1.
AS AVENTURAS DOS SMURFS 2
Agora no final de
semana, em clima de Dia dos Pais, fui ao cinema com meus filhos assistir ao
filme dos SMURFS 2. Inicialmente pode soar como um singelo entretenimento
familiar com um filme de personagens infantis que, atenderia à sua função
apenas pela ótica do lazer.
Ocorre, porém, que ao
começar a assistir ao filme, o enredo do mesmo me remeteu a algumas reflexões
jurídicas, quais, doravante apreciarei.
O filme conta a estória
dos Smurfs, uns serezinhos azuis de aproximadamente 25 centímetros de altura,
que, sob o comando do Papai Smurfs, vivem numa vila perdida na floresta. Ocorre,
porém, que nos arredores desta vila, existe um feiticeiro e alquimista chamado
Gargamel, que junto com o seu gato, Cruel, persegue os Smurfs, figurando como o
vilão da estória.
Conforme se depreende
da estória, o Gargamel, por meio das suas feitiçarias, conseguiu criar a
Smurfette, um serzinho similar a eles, mas do sexo feminino, que apesar de ter
sido criada para ajudá-lo a capturar os Smurfs, ela terminou sendo acolhida por
eles, passando a integrar a família como a única fêmea dos Smurfs.
Agora no 2º filme, o
Gargamel cria dois serezinhos maus, chamados de “Danadinhos” (Vexy e Hackus),
para ajudá-lo na missão de sequestrar a Smurfette para, assim, tentar descobrir
a formula mágica por meio da qual o Papai Smurf a transformou em um deles, de
modo a permitir-lhe transformar os Danadinhos em Smurfs também e, assim,
explorar sua essência para dar continuidade aos seus planos malignos.
Apesar de ser um filme
tipicamente infantil, com personagens originários dos desenhos animados, duas
situações merecem destaque. Inicialmente, o fato da Smurfette ser filha do
Gargamel (já que ela foi gerada por ele) e ter sido acolhida afetivamente pelo
Papai Smurf, passando a ser integrada à família como mais um dos seus filhos, agora,
o Gargamel cria os Danadinhos, mas apesar de ser pai deles também, com o
desfecho da aventura, os mesmos também são acolhidos pelos Smurfs, passando a
ser tratados como um deles, integrando, afetivamente a família do Papai Smurf.
Diante da estória, nos
grita aos olhos uma situação inusitada das conjunturas da família contemporânea, que se amolda à noção da filiação
socioafetiva, onde o vínculo paterno-filial é construído pelo afeto, não por
laços biológicos. Isso mesmo, pois tanto a Smurfette, quanto os dois Danadinhos,
a Vexy e o Hackus, são filhos do Gargamel, mas ao serem acolhidos pela família
Smurf, passam a integrá-la, estabelecendo, assim, um vínculo essencialmente
afetivo entre pai e filhos.
2.
DA FILIAÇÃO
A procriação é
responsável pela magia da vida, pois consiste na forma com que um ser vivo
produz e dá origem a um descendente da sua própria espécie.
Atualmente, a produção
de um descendente da própria espécie pode ser um fato natural, ou artificial.
Natural, quando decorre da relação sexual dos genitores, ao tempo em que artificial,
quando for usada as técnicas médicas de reprodução assistida.
Transplantado para o
âmbito do direito, dá-se origem à Filiação, que consiste no vínculo jurídico de
parentesco em linha reta, de 1º grau, pelo meio do qual estarão interligado
pais e filhos para todos os fins de direito, englobando, assim, tanto os direitos
pessoais, quanto obrigacionais, independente de qual seja a sua origem.
2.1. DA FILIAÇÃO
SOCIOAFETIVA
A filiação, como um
vínculo jurídico de parentesco, apresenta-se de duas formas, quais sejam, a
filiação biológica e a filiação não biológica.
Ao tempo em que a
filiação biológica tem seu fundamento na consanguinidade, onde pais e filhos
estão interligados pelos laços genéticos, na filiação não biológica, o vínculo
estabelecido transcende ao dado biológico, indo além da
consanguinidade, sendo pautado nas afinidades, na convivência, na troca de
afeto e no exercício das responsabilidades típicas dos pais perante seus filhos,
emanando das relações fáticas o vínculo socioafetivo.
A filiação
socioafetiva é mais que um dado, ela materializa a construção da paternidade no
convívio cotidiano sendo alicerçada com base no afeto, na garantia de uma
criação digna, preocupada com a saúde e a educação típica das relações domésticas
familiares inerentes ao vínculo entre pais e filhos.
Luiz Edson
Fachin (1996, p. 36-37), entende que, “Se o liame biológico que liga um pai a
um filho é um dado, a paternidade pode exigir mais do que apenas laços de
sangue. Afirma-se aí a paternidade socioafetiva que se capta juridicamente na
expressão de posse de estado de filho”.
Assim,
aquele que age como um pai perante seu filho, assumindo as responsabilidades
inerentes à criação, educação, cuidados e amparo afetivo, mesmo desatrelado do
liame genético, demonstra conviver diante da posse de estado de filiação,
sendo, assim, por conta das circunstâncias fáticas, é tido como pai, pois o
provérbio popular há muito já prenuncia que “pai é quem cria”.
Assim,
afirma-se que a filiação deixa de ser um dado e passa a ser concebida diante da
sua função social, ou seja, do exercício efetivo de uma função desempenhada por
alguém que assume o múnus de cuidar, educar e assistir afetiva e materialmente
alguém como se fosse um filho (Art. 229, CF-88).
Neste
contexto, inclusive, Rodrigo da Cunha Pereira (2004, p.387) afirma que este
lugar pode ser ocupado por alguém, que não necessariamente seja o pai
biológico, ou seja, esta função pode ser exercida “por outra pessoa como o
irmão mais velho, o avô, o namorado, etc.”
3. FILIAÇÃO BIOLÓGICA x FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA
Pode
parecer contraditório o fato da filiação socioafetiva passar a ser discutida
atualmente, num momento onde os avanços científicos da medicina e da
biogenética atestam por meio do exame de DNA a origem genética de um indivíduo com
o grau de certeza de 99,9%.
Bem, por
mais que seja difícil de compreender, o exame de DNA perante o direito se
adequa à categoria de meio de prova pericial, qual, além de não ser o único
meio de prova, conforme teoria geral do direito, não há hierarquia entre as provas,
assim, cabe ao bom magistrado formar seu convencimento diante do apreço de todo
o arcabouço probatório que estiver acostado aos autos do processo, sem
precipitação, pois de que valeria um dado biológico, se a função paterna for menosprezada em seu favor?!
Bem, diante da existência
destas duas espécies de filiação, a filiação socioafetiva foi sedimentada na
doutrina, o que desaguou no recebimento de um crescente número de demandas no judiciário, fato que levou a discussão
ao Supremo Tribunal Federal (STF) como um tema de repercussão geral e
interesse social, mas que ainda está aguardando o posicionamento da Corte
Constitucional.
Bem, enquanto
não se tiver uma resposta do STF, o posicionamento prevalecente hoje em dia é
de que, diante desta realidade, ambas as espécies de filiação coexistem, não
havendo prevalência de uma sobre a outra. Diante dum eventual embate entre
elas, cabe o apreço das circunstâncias fáticas do caso concreto, com
razoabilidade, ponderando os interesses legítimos no processo.
Cabe-nos
asseverar ainda que o AFETO só pode ser utilizado como fator de constituição do
vínculo de filiação, mas nunca deve ser utilizada a sua ausência para esquivar,
quem alegue, das obrigações paterno-filiais decorrentes do reconhecimento da
filiação.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme
apresentado ao longo do filme dos Smurfs, apesar do Gargamel ser o responsável
pelo nascimento da Smurfette, bem como dos Danadinhos, Vexy
e Hackus, ao serem acolhidos pelo Papai Smorf, tratados como filhos, integrados
à família azulada com muito carinho, amor e cuidado uns para com os outros,
oportuniza-se que os vínculos socioafetivos se estabeleçam, demonstrando que a
voz do afeto vai muito mais além do que o simples dado biológico.
Outrossim, há que compreender que um filho pode se manifestar na vida da pessoa de várias maneiras, não podendo ser desprezada tal realidade, independente da sua origem.
REFERÊNCIAS
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Pai, Por que me
Abandonaste? In: FARIAS, Cristiano
Chaves de. (Coord.). Temas Atuais de
Direito e Processo de Família. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004.
FACHIN, Luiz Edson. Da
Paternidade: Relação Biológica e Afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
[1]
Clever Jatobá é Advogado e Consultor Jurídico, Pós
Graduado em Direito do Estado, bem como em Direito Civil e do Consumidor
(JusPodivm), Mestrando em Família na Sociedade Contemporânea (UCSal), bem como,
Aluno do Curso de Doutorado em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires
(UBA – Argentina). Professor de Direito Civil, Direitos da Criança e do
Adolescente e de Direito do Consumiddor. Coordenador do Curso de Direito da
Faculdade APOIO UNIFASS (Lauro de Freitas-Ba). Membro do IBDFAM – Instituto
Brasileiro de Direito de Família.
Muito bom. Parabéns querido. Vejo com muito bons olhos essa aproximação entre o direito e a arte, que nos força lembrar a todo instante que o direito nos cerca o tempo inteiro e está para muito além dos livros e da sala de aula.
ResponderExcluirAdorei! Excelente analogia!
ResponderExcluirExcelente. Nota-se que o direito está em tudo, mesmo que implicitamente, parabéns pela reflexão jurídica e pelo olhar jurídico diante desses ''fatos''. Abraço.
ResponderExcluirGabriela Freire, 2º semestre de direito, faculdade apoio-UNIFASS
Excelente reflexão, Professor.
ResponderExcluirA maior lição que tirei da leitura é que quando temos conhecimento, podemos enxergar além...
Tenho desenvolvido estudos acerca da Paternidade Socioafetiva e, diante do vosso texto, pude ver o quão enriquecedor pode ser a observação do quotidiano, dos filmes, das novelas, dos romances, enfim. Até de uma película para miúdos, como os Smurfs, pode ser bem aproveitada.
Congratulações. Abraço,
Lídia Campos.
(Vila Real - Portugal)