Por: Clever Jatobá
Um dos assuntos mais
controvertidos do Direito Civil Brasileiro diz respeito à TUTELA DO NASCITURO,
ou seja, à proteção jurídica conferida o ser humano gerado ou já
concebido no ventre materno, mas ainda por nascer. A polêmica
surgiu desde o Código Civil de 1916 e se protrai no tempo até a atualidade. É
que a péssima redação do antigo Código Civil acerca do surgimento da
personalidade foi de forma descompromissada repetida pelo Código Civil de 2002, não
inovando acerca da tutela do nascituro, mantendo a diretriz démodé que desmerece a divergência
doutrinária sem oferecer uma solução definitiva.
Consoante disposição do Código Civil Brasileiro, Lei n.º 10.406/2002, no caput do seu artigo 2º, “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe à salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
Consoante disposição do Código Civil Brasileiro, Lei n.º 10.406/2002, no caput do seu artigo 2º, “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe à salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
Ao tratar da personalidade
civil, conforme clássica lição de Caio Mário da Silva Pereira (2009, p.181), o
dispositivo legal disciplina a aptidão genérica para adquirir direitos e
contrair deveres na ordem jurídica, enfatizando que “esta aptidão é hoje
reconhecida a todo ser humano, o que exprime uma conquista da civilização
jurídica”. Assim, podemos asseverar que a personalidade é atributo jurídico
inerente à condição de pessoa (natural, ou jurídica), onde, em especial,
atualmente, todo ser humano tem personalidade.
Por sua vez, podemos dizer
que pessoa seria todo ser humano de existência biopsíquica real, ou um ente de
existência ideal[1] reconhecido pelo direito
para o exercício de uma atividade, com capacidade para ser sujeito ativo ou
passivo de direitos na ordem jurídica. Desta forma, o Codex Civile vinculou à pessoa (natural, ou jurídica), a capacidade
de titularizar direitos e deveres, quando em seu artigo inicial determinou que
“toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” (Art. 1º, CCB-02).
Para Orlando Gomes (2010,
p.107), quando a lei ressalva direitos ao nascituro, não garante a este
personalidade, mas, desde a concepção, é como se tivesse, por isso, o mesmo
sustenta haver duas categorias de personalidade: a real, verdadeira e
autêntica; em contraposição à fictícia, artificial ou presumida. Para o mesmo,
a personalização do nascituro é uma ficção atribuída por reconhecer nos
beneficiários a aptidão para ter direitos, mas não lhes concede a condição de
pessoa natural antes de nascer com vida (sic).
Conforme leciona Tânia da
Silva Pereira (2008, p.233), tem-se uma inusitada situação:
[...]
afirma-se que com a concepção, o nascituro adquire direitos, mas a
personalidade civil somente surge com o nascimento com vida, conforme estatui o
referido artigo. São acontecimentos distintos. Primeiro adquire direito e,
somente mais tarde, adquire personalidade civil, surgindo a curiosa situação de
possuir direitos, sem ter personalidade, no período compreendido entre a
concepção e o nascimento.
Pois é, desta disciplina do Codex Civile surgem três correntes
teóricas que buscam nortear, sob o prisma jurídico, a aptidão para ser titular
de direitos e deveres na ordem civil, quais são materializadas pela
personalidade civil, diante da origem da vida, perante a efetiva produção dos
seus efeitos, são elas: a corrente natalista;
a corrente concepcionista; e a
híbrida ou mista, chamada de corrente da personalidade
condicional.
Segundo a teoria natalista, a personalidade civil
surge a partir do nascimento com vida, donde a pessoa passará a titularizar
direitos e deveres na ordem jurídica. Conforme leciona Pablo Stolze Gagliano e
Rodolfo Pamplona Filho (2010, p.125):
No
instante em que principia o funcionamento do aparelho cardiorespiratório,
clinicamente aferível pelo exame de docimasia hidrostática de Galeno, o
recém-nascido adquire personalidade jurídica, tornando-se sujeito de direito,
mesmo que venha a falecer minutos depois.
Segundo lição de Caio Mário
da Silva Pereira (2009, p.184 e 188), o nascituro ainda não é pessoa (sic), não
é um ser dotado de personalidade jurídica, todavia, ao lhes reconhecer direitos,
não se estaria reconhecendo a condição de sujeito de direito, mas, apenas um
estado potencial destes serem efetivados após o nascimento com vida.
Por sua vez, a teoria concepcionista determina a
aquisição da personalidade jurídica desde a concepção. Nestes moldes,
compreende-se haver pessoa desde a concepção, de modo que o feto é plenamente
reconhecido como sujeito de direito.
Conforme lecionam Cristiano
Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2012, p.303), defendendo tal teoria, além
da inquestionável titularidade dos direitos da personalidade pelo nascituro, o
ordenamento jurídico brasileiro confere-lhe outros tantos direitos, tais como o
reconhecimento da filiação, a nomeação de curador em seu favor, o direito à ser
beneficiário de doação, a capacidade sucessória, entre outros, de modo a se
delinear o reconhecimento da personalidade jurídica do nascituro.
Por fim, a teoria híbrida, mista, eclética ou da personalidade condicionada disciplina
que desde a concepção passa-se a ser sujeito de direito, adquirindo personalidade
ainda na vida intrauterina, mas ressalva que a titularidade de direitos têm
seus efeitos patrimoniais contidos, condicionados ao nascimento com vida.
Neste sentido, Pablo Stolze
Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2010, p.127) alertam: [...] essa personalidade
confere aptidão apenas para a titularidade de direitos da personalidade (sem
conteúdo patrimonial), a exemplo do direito à vida ou a uma gestação saudável,
uma vez que os direitos patrimoniais estariam sujeitos ao nascimento com vida
(condição suspensiva).
Na doutrina e no ambiente
acadêmico criou-se o mito de que a corrente natalista seria a majoritária no
Brasil, haja visto o fato do dispositivo legal falar expressamente em seu
artigo 2º (CC-02) que “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com
vida”(...). Em verdade, na época do Código Civil de 1916 tal entendimento era
predominante na doutrina, todavia, atualmente não se comprova a prevalência de
tal posicionamento entre os doutos contemporâneos, pois como pontua Cristiano
Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2012, p.303) “a lei civil (CC, art. 2º)
resguarda, expressamente, os direitos do nascituro, servindo para afastar,
peremptoriamente, a tese natalista, por pregar que somente seria possível
reconhecer direitos do nascituro depois de nascer vivo”.
O acolhimento da tese
natalista pela doutrina no curso do Século XX é justificável, pois quando da
regulamentação do Código Civil Brasileiro de 1916, a existência real da pessoa
só poderia ser concretizada a partir do nascimento com vida, visto que no
ventre materno não se podia alcançar-lhe, nem tampouco oferecer-lhe a guarida
dos seus direitos da personalidade, pois não se teria acesso à sua imagem, não
podendo alcançar ou invadir sua intimidade, nem ofender sua honra, ou sequer
atribuir-lhe um nome, já que este dependeria do assento de nascimento no
registro público. Quanto ao direito à vida, ou à integridade física,
sustentava-se haver uma expectativa de direito, que se concretizaria a partir
do momento da expulsão das entranhas maternas, promovendo a completa separação
de um ser humano do outro, atestando-se que nascesse com vida.
Pois bem, os tempos mudaram e a vida intrauterina não pode mais ser desprezada. Com a ultrassonografia em 3D consegue-se com exatidão alcançar a imagem do feto, permitindo, inclusive, invadir a sua intimidade e até atentar contra sua honra. A atividade cerebral e cardíaca pode ser controlada com a ultrassonografia morfológica. Quanto ao nome, não se faz necessário o registro para que se alcance a proteção dos direitos da personalidade, pois a atual legislação reconhece ao pseudônimo, para os fins lícitos, todos os direitos que corresponderiam ao nome civil. Enfim, novos paradigmas reclamam uma nova postura do direito, não sendo razoável manter um posicionamento ultrapassado, que distancia o direito da realidade.
No âmbito do direito penal, inclusive, encontra-se tipificado pelo Código Penal Brasileiro, no título dos crimes contra a pessoa, mais precisamente no capítulo destinado aos crimes contra a vida, a figura do crime de aborto, prescrita no artigo 124 e seguintes, sob a rubrica inicial de Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento.
Partindo da premissa de que o
aborto consiste na interrupção da gravidez, ocasionando a morte do feto,
privando-lhe do nascimento, faz-se imperioso o reconhecimento da proteção à
vida intrauterina pelo Direito Penal, destinando atenção especial ao nascituro,
reconhecendo-o como sujeito de direito, tutelando seu direito à vida, não se
podendo deturpar a compreensão da lei penal para restringi-la justificando a
proteção apenas à mera expectativa de vida.
De forma muito elucidativa
posiciona-se Rogério Greco (2008) asseverando que:
A vida
tem início a partir da concepção ou fecundação, isto é, desde o momento em que
o óvulo feminino é fecundado pelo espermatozóide masculino. Contudo, para fins
de proteção por intermédio da lei penal, a vida só terá relevância após a nidação, que diz respeito à implantação do óvulo já fecundado no útero
materno, o que ocorre 14 (quatorze) dias após a fecundação. (grifos no
original)
Assim, a vida da pessoa para
a proteção penal tem início a partir da concepção ou fecundação, todavia, se a
relevância jurídica da concepção se dá a partir do momento em que o feto
ingressa no útero materno passando a desenvolver-se, pode-se compreender porque
o uso das chamadas pílulas do dia seguinte não configura o crime de aborto.
A observação da realidade,
com respeito à evolução tecnológica e científica, bem como a tentativa de preservar
a coerência do ordenamento jurídico nos faz constatar que a afirmativa de que o
Código Civil teria adotado as diretrizes da corrente natalista, conferindo a
titularidade de direitos à pessoa a partir do nascimento com vida, seria uma
postura não apenas precipitada, como deveras equivocada, que segregaria o
direito civil da harmonização com as demais diretrizes adotadas pelo
ordenamento jurídico do país.
Destarte, diante de tal
realidade contemporânea, faz-se necessário promover uma releitura dos
paradigmas da tutela do nascituro, de modo a reconhecer que no ventre materno
se desenvolve um ser humano, que ontologicamente é, independentemente do
nascimento, uma pessoa, somente assim pode ser inteligível delimitarmos o marco
inicial da titularidade de direitos pela pessoa, desde a concepção, na condição
de nascituro, reconhecendo a plenitude da proteção do ser humano pelo
ordenamento jurídico brasileiro.
[1] Conforme leciona Orlando Gomes (2010,
p. 107), “A ordem Jurídica admite duas espécies de pessoas: as pessoas
naturais, também chamadas de pessoas físicas, e as pessoas jurídicas, denominadas
por Teixeira de Freitas, respectivamente, pessoas de existência visível e de
existência ideal”.
O AUTOR
Clever Jatobá é Advogado e Consultor Jurídico baiano, Pós Graduado em Direito do Estado, bem como em Direito Civil e do Consumidor pelo JusPodivm e Faculdade Baiana de Direito, além de aluno do Doutorado em Direito Civil na Universidad de Buenos Aires (UBA), na Argentina. Professor de Direito Civil, Criança e do Adolescente e do Consumidor, lecionando atualmente na FAMEC (Camaçari-Ba) e na Faculdade APOIO / UNIFASS (Lauro de Freitas-Ba), onde também é Coordenador do Curso de Direito.
www.cleverjatoba.adv.br
E-mail: cleverjatoba@yahoo.com.br
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FARIAS, Cristiano
Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil – Parte Geral e LINDB. 10ª
Ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2012.
GAGLIANO, Pablo
Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil –
Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2010.
GOMES, Orlando. Introdução
ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Gen, Forense, 2010.
GRECO, Rogério. Código
Penal Comentado. Niterói, RJ: Impetus, 2008.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições
de Direito Civil. Introdução ao Direito Civil. Teoria Geral do Direito
Civil. Rio de Janeiro: Gen, Forense, 2009.
PEREIRA, Tânia da Silva. Direito
da Criança e do Adolescente. Uma Proposta Interdisciplinar. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008.
BIBLIOGRAFIA:
O presente texto foi adaptado
pelo autor para o Blog, mas pode ser encontrado em sua versão original e
integral na obra:
JATOBÁ, Clever. A Tutela do Nascituro e o Ordenamento Jurídico
Brasileiro diante da condição de “pessoa” em situação peculiar de
desenvolvimento. In:
TAYAH, José Marcos; ROMANO, Letícia Danielle; ARAGÃO, Paulo. (Coord)
Reflexiones sobre Derecho Latinoamericano: Estudios en homenaje a La Professora
Marta Biage. São Paulo; Rio de Janeiro; Buenos Aires: Livre Expressão, 2012.
ISBN: 978-85-7984-454-6
ISBN: 978-85-7984-454-6
FOTOS:
FOTOS 1 e 2 Ultrassonografia do meu filho: Kal-El
FOTO 3 - Palestra em Buenos Aires em Julho de 2012.
Excelente texto, professor Jatobá!!! Se aparecer questão relativa a esse assunto na avaliação, com certeza acertarei a resposta. Abraço!!!!!
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