quinta-feira, 28 de agosto de 2025

INTRODUÇÃO AO DIREITO PRIVADO - AULA 03

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
Prof. Clever Jatobá[1]

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O Direito Civil tem sua gênese atrelada ao direito romano da antiguidade, sendo base estrutural do direito privado, regulando os interesses particulares e suas relações jurídicas, sendo transformado, paulatinamente, ao largo da história.

Ciente de que o Brasil foi colônia de Portugal desde o ano de 1500, na perspectiva do direito, sobreleva atenção histórica apenas a partir do século XIX, período de grandes transformações para o país que registrou desde a chegada da Família Real ao Brasil (22.01.1808) transformando o país em sede do Império Português, promoveu a Independência do Brasil e a adoção da Monarquia Brasileira (07.09.1822), bem como, a Abolição da Escravatura (13.05.1888) e a Proclamação da República (15.11.1889). 

O Século XX, a propósito, é um marco para o Direito Civil, pois, no seu início, a França editou o Código Civil de Napoleão (1804), inaugurando a era dos códigos modernos, promovendo a organização sistemática do conteúdo em uma completude até então inexistente no mundo, passando a servir de referência às codificações modernas.

No decorrer do século, a importância do Código Civil de Napoleão foi sendo propagada pelo mundo afora, suscitando a necessidade dos demais países promoverem a uniformização do Direito Civil através de uma codificação.

No Brasil, por ter sido colônia de Portugal desde 1500, os interesses privados e as relações jurídicas particulares foram regidas pelas Ordenações Afonsinas (que vigorou de 1446 a 1514), Manuelinas (de 1521 a 1595) e Filipinas que, apesar de vigente em Portugal no período de 1603 até 1867, quando foi revogada pela edição do Código Civil Português, permaneceu sendo aplicada no Brasil junto com decretos e leis espaças editadas no período da monarquia brasileira.

Depois da declaração da Independência (1822), o Imperador Dom Pedro I, ao outorgar a Constituição Política do Império do Brasil (1824), além de revogar parte da Ordenação Filipina, reconheceu expressamente em dispositivo da referida Carta Política a necessidade de se elaborar um Código Civil e um Código Criminal a serem estruturados à luz da justiça e equidade.


2 A CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS CIVIS DO BRASIL

Imbuído desse mister, antes de abdicar ao trono, Dom Pedro I decretou por meio da Assembleia Geral o primeiro Código Criminal do Brasil, em 1830, legislação que, editada no auge do período escravagista, fazia distinção entre os negros escravizados e o cidadão livre, quando da aplicação da pena, legando aos escravos apenas as penas mais severas, a se dizer: a morte, as galés (trabalho forçado acorrentados uns aos outros) e os açoites.

Assim, Dom Pedro I abdicou do trono sem implementar a codificação civil brasileira.

Durante o governo do Imperador Dom Pedro II, por conta das dimensões continentais do país, da falta de instrumentos eficazes de comunicação e divulgação dos atos público, permaneceu sendo aplicada as regras das Ordenações Filipinas em várias partes do território nacional, junto com decretos e atos normativos espaços, desmerecendo, muitas vezes, os trechos anteriormente revogados, configurando um emaranhado normativo confuso e complexo que desaguava em uma eventual insegurança jurídica.

Diante dessa situação, o Imperador Dom Pedro II sentiu a necessidade de uniformizar as leis civis em território nacional antes de se debruçar na empreitada de produzir o Código Civil, assim, requisitou do Conselheiro do Império, o jurista baiano, Dr. José Tomás Nabuco de Araújo, a indicação de alguém capaz de organizar a confusa legislação civil brasileira.

Destarte, o iminente jurista conselheiro imperial indicou o jurisconsulto baiano, nascido em Cachoeira, no Recôncavo da Bahia, Dr. Augusto Teixeira de Freitas [2], um jovem brilhante e grande conhecedor do direito romano e concatenado com as discussões jurídicas travadas pelo direito francês e alemão.

Foi assim que, imbuído desse mister, o jurisconsulto baiano, Augusto Teixeira de Freitas, com grande êxito, promoveu a uniformização do Direito Civil brasileiro ao elaborar a Consolidação das Leis Civis que foi publicada em 1857 passando a reger os interesses privados e as relações jurídicas entre os particulares em território nacional.

Apesar de se registrar ser o texto consolidado o primeiro diploma cível brasileiro, vale salientar que não se trata de um texto originalmente criado pelo Jurisconsulto do Império, mas, sim, uma compilação das normas existentes à época que foram organizadas sistematicamente pelo monumental trabalho desenvolvido.

3 O PRIMEIRO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 1916

O sucesso das Consolidações das Leis Civis Brasileiras foi tão grande que o Imperador incumbiu a Teixeira de Freitas a missão de elaborar o primeiro Código Civil brasileiro, fato que desaguou na elaboração do texto batizado com o nome de Esboço.

Conforme explicam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2022, p. 72):

 

Realizado um estudo profundo da matéria, considerou o ilustre jurista que, em vez de fazer simplesmente o projeto encomendado, seria muito mais digno oferecer um trabalho preparatório, destinado a ser publicado parcialmente, na medida em que fossem concluídas as suas partes, submetendo-o a crítica geral. Assim, em 1865, publicou o denominado esboço, contando 1.702 artigos, permanecendo em curso de publicação um total de 1.314 artigos, relativos a toda a parte dos direitos reais.


Em que pese a excelência do trabalho desenvolvido, por questões políticas e divergências ideológicas de uma sociedade escravagista confrontada por ideais abolicionistas do autor, o texto terminou não sendo aprovado, mas, como bem destacam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2012, p.46), "o seu projeto serviu como substrato para a elaboração do Código Civil argentino, por Dalmacio Vélz Sarsfield, em 1871, além de inspirar também o BGB alemão".

Destarte, restou adiando a ideia do Brasil ter sua codificação civil para o século seguinte[3], mantendo, assim, a vigência da Consolidação das Leis Civil desde o período Imperial até o início e consolidação da República no início .

Após frustrada essa primeira tentativa de elaborar o Código Civil brasileiro, ainda se promoveu outras três tentativas, através do projeto de Nabuco de Araújo (1872-1878), do projeto de Felício dos Santos (1881-1886) e do projeto de Coelho Rodrigues (1893).

Designou-se, então, o jurista cearense Clóvis Beviláqua, Professor de Direito Comparado da Faculdade de Direito de Recife, que elaborou o projeto e, depois de 15 anos de debates, foi aprovado, sancionado e convertido na Lei n.º 3.071/1916 o primeiro Código Civil Brasileiro, batizado, à época, como Código Civil dos Estados Unidos do Brasil e conhecido popularmente no ambiente jurídico como Código de Beviláqua.

4 CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002

O Código de Beviláqua, publicado em 1º de janeiro de 1916, entrou em vigor em 1917 refletindo os valores da sociedade brasileira que lhe era contemporânea à época, tendo sofrido influências liberalistas dos ideias iluministas de cunho individualista que balizaram o Código de Napoleão, dos valores propagados pela Igreja Católica Apostólica Romana e oxigenado suas ideias diante da influência do Código Civil Alemão.

Nessa ordem de ideias, o primeiro Código Civil Brasileiro cuidou das relações jurídicas privadas, dos vínculos e interesses particulares da sociedade da época, valorizando a posse e a propriedade privada, o contrato como instrumento jurídico destinado a viabilizar a circulação de riquezas no âmbito das relações civis, a família legítima estruturada por meio do casamento indissolúvel e a transmissão post mortem do patrimônio construído em vida pela sucessão aos herdeiros legítimos e testamentário.

Conforme refletem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2012, p.50), diante desse diploma legal, "ocupava-se o Direito Civil, forjado no paradigma do individualismo e do absolutismo da vontade, com a preservação patrimonial dos sujeitos de direito: o proprietário, o contratante, o marido e o testador".

Nada obstante, diante da longevidade da sua vigência, ao longo do século XX, muitas transformações sociais foram vivenciadas desaguando no surgimento de muitas leis espaças acompanhada das transformações jurisprudenciais que dimensionavam a leitura, interpretação e aplicação do Direito Civil aos casos concretos, assim, aos poucos, as mudanças dos valores, dos costumes e da realidade passaram a reclamar a elaboração de um novo diploma codificado que acompanhasse a realidade da época.

Assim, após a rejeição de algumas propostas, durante a Ditadura Militar (1964 - 1985), no final da década de 60, confiou-se ao jurista paulista, de São Bento do Sapucaí, Miguel Reale a missão de capitanear uma comissão de juristas para confeccionar o novo diploma civil brasileiro, tendo sido apresentado em 1974.

Diante do processo de redemocratização do Brasil, apesar de ter sido aprovado na Câmara dos Deputados em 1984, o projeto de aprovação foi interrompido e engavetado.

Com o resgate da democracia e o advento da Constituição Federal de 1988 tornou-se uma necessidade inadiável a elaboração de um novo Código Civil que fosse mais concatenado com a realidade, que refletisse os ditames constitucionais atuais e a própria evolução do direito, a sua função social, a salvaguarda da pessoa, a preservação da sua dignidade e seus direitos personalíssimos, promovendo, assim, a tutela dos direitos humanos e fundamentais diante de uma sociedade pluralista e desigual.

Nesse cenário, desarquivou-se o antigo projeto, sacudi-lhe a poeira e, após tentar promover alguns ajustes - data maxima venia - talvez sem o devido comprometimento social com a nova ordem constitucional vigente, aprovou-se e levou à sanção presidencial o texto da Lei n.º 10.406/2002 implementando, assim, o novo Código Civil Brasileiro que, conforme sustentou o próprio Miguel Reale, foi pautado nos ditames principiológicos da eticidade, da operabilidade e da socialidade. 

5 DA NECESSÁRIA REFORMA DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

O novo Código Civil, apesar de muitas vezes dissociado da nova ordem constitucional vigente, registrou uma positiva mudança no cenário cível brasileiro, adotando preceitos e princípios mais modernos, assim, à luz da eticidade, valorizou a boa-fé objetiva, em prol da operabilidade adotou o uso de cláusulas abertas e a maior liberdade interpretativa e, em homenagem à socialidade, reconheceu a função social como ditame essencial à nova realidade jurídica.

Nada obstante, o fato de o texto original ser escrito no período ditatorial e, apesar dos ajustes promovidos para a sua aprovação, diante do comodismo de reiterar ditames da legislação anterior sem ousar ser um código mais moderno e progressista, apesar de estar em vigor, seu texto tem sido objeto de constantes críticas, em especial no âmbito do Direito das Famílias, tido como démodé por aplicar à sociedade dos anos dois mil muitos valores dos anos novecentistas, fato que o distanciou da realidade contemporânea.

Conforme já refletimos a respeito,

Mas nem tudo estava perdido...

 

Assim, seguindo as novas perspectivas doutrinárias, o judiciário oxigenou suas ideias e permitiu avançar para além do que estava plasmado no texto do Código Civil brasileiro, editado pela Lei nº 10.406/2002, promovendo a maior transformação jurídica de todos os tempos, aproximando, através do ativismo judicial, a releitura do texto legal à luz dos novos valores constitucionais. Com isso, supriu lacunas deixadas pela imperícia ou negligência do legislador ordinário, para evitar que injustiças se perpetuassem no universo jurídico [...]. (JATOBÁ, 2020, p. 37)


Assim, passado mais de vinte anos da sua entrada em vigor, diante das transformações sociais e tecnológicas vivenciadas, bem como em face aos avanços desenhados pela doutrina e das mudanças alcançados na seara cível por meio da jurisprudência, mais uma vez, faz-se necessário repaginar o texto legal do diploma civil brasileiro para ajustá-lo à realidade contemporânea.

Nessa ordem de ideias, foi apresentado ao Congresso Nacional pelo Senador Rodrigo Pacheco o Projeto de Lei n.º 4, de 31 de janeiro de 2025, o qual busca promover a Reforma do Código Civil brasileiro.

A proposta de reforma do Código Civil brasileiro é resultado do trabalho de uma seleta Comissão de Juristas brasileiros, tendo sido elaborada em consonância com as discussões doutrinárias e a evolução jurisprudencial, respeitando a literatura jurídica especializada, os enunciados das Jornadas do Conselho da Justiça Federal e os entendimentos jurisprudenciais consolidados, em especial, pelos tribunais superiores.

Nessa ordem de ideias, a partir de um estudo aprofundado das temáticas cíveis, a proposta de reforma do Código Civil brasileiro está consentânea com os ditames do fenômeno da constitucionalização do Direito Civil[4], tendo como bússola o respeito e a valorização da dignidade da pessoa humana.

Assim, em plena efervescência e mais vivo do que nunca, a jornada do Direito Civil brasileiro está na iminência de sofrer uma transformação significativa, cabendo-nos aguardar para usufruirmos dos avanços que estão por vir, com o anseio de que, através desta nova empreitada legislativa, possamos construir, através do direito, uma sociedade mais justa e solidária.

REFERÊNCIAS:

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Parte Geral e LINDB. 10.ed. Salvador: JusPodivm, 2012.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
JATOBÁ, Clever. Curso de Direito de Família. 2.ed. Salvador: Mente Aberta, 2020.

IMAGENS:

1ª Dom Pedro I
2ª Augusto Teixeira de Freitas
3º Clóvis Beviláqua
4º Miguel Reale
5º Livro: A Reforma do Código Civil Brasileiro - disponível na Livraria do Senado Federal



[1] Clever Jatobá é Advogado e Consultor Jurídico baiano, Doutor e Mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela UCsal, tendo Pós-graduação em Direito do Estado, bem como em Direito Civil e do Consumidor (JusPodivm), além de ter sido Aluno do Curso de Doutorado em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires (UBA – Argentina). Professor de Direito Civil e Processual Civil, atualmente lecionando na Faculdade batista de Direito (FBB). Autor de diversas obras jurídicas e escritos poéticos e literários.
[2] Teixeira de Freitas era detentor de um invejável saber jurídico. Tinha no seu currículo a formação nas duas escolas de Direito do Brasil, tendo ingressado na Faculdade de Direito aos 16 anos de idade, cursando o 1º ano na Academia de Ciências sociais e Jurídicas de Olinda e o 2º e 3º anos, em São Paulo, na Faculdade do Largo do São Francisco, vindo a concluir os estudos em Olinda, em 1837, com nota máxima.
[3] Conforme já mencionado, apesar de não ter sido adotado como legislação civil brasileira, o Esboço de Teixeira de Freitas terminou sendo aproveitado pelo jurista Portenho Dalmacio Vélez Sarsfield ao ponto de ser adotado como o Código Civil da Argentina que vigorou até 1º de agosto de 2015, além de influenciar outras legislações latino-americanas.
[4] Fenômeno jurídico que impõe que a aplicação das normas do Direito Civil deve estar consentânea com os ditames constitucionais, ou seja, deve estar de acordo com as regras e princípios constitucionais, ao tempo em que, o reconhecimento da força normativa dos princípios fundamentais do direito civil passa a condicionar sua observância pelos cidadãos e sua aplicação pelos tribunais.

Um comentário:

  1. Parabenizo o Prof. Clever Jatobá pela clareza e didática na abordagem da evolução histórica do Direito Civil brasileiro, tornando o conteúdo acessível, interessante e inspirador para todos os alunos.
    Daniela Macedo / FBB

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